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Caso Zambelli: como Brasil e Itália resolveram episódios de extradição de condenados na Justiça

 


Brasil e Itália mantêm, desde 1989, um Acordo de Cooperação Mútua em Matéria Penal, que prevê, entre outros dispositivos, a extradição de pessoas condenadas ou acusadas de crimes em cada jurisdição. Esse tratado tem sido testado diversas vezes ao longo das últimas décadas, em casos que ilustram como a cooperação internacional se manifesta concretamente, refletindo interesses políticos, jurídicos e diplomáticos. O cenário atual, marcado pelo pedido de prisão preventiva contra a deputada federal Carla Zambelli, que, conforme a defesa, estaria nos Estados Unidos, reacende debates sobre a efetividade e os trâmites legais para obtenção de extradição entre países. A seguir, um panorama de episódios emblemáticos que envolveram tanto autoridades italianas quanto brasileiras, e como cada situação foi conduzida.

Tommaso Buscetta (Década de 1970 a 1980)
Nos anos 1960, Tommaso Buscetta, um dos mais influentes membros da Cosa Nostra, chega ao Brasil. Inicialmente, sua atuação no território brasileiro envolvia contatos para tráfico internacional de drogas e esquemas de lavagem de dinheiro vinculados à máfia siciliana. Preso pela Polícia Federal em 1972, foi extraditado para a Itália pouco tempo depois, onde cumpriu pena até 1980. Solto, retornou ao Brasil livre e, em 1983, acabou detido novamente por autoridades locais. Buscando proteção diante de ameaças de morte e temendo retaliações internas na máfia, optou pela colaboração com as forças de segurança italianas e estadunidenses, tornando-se o primeiro grande “pentito” (arrependido) da Cosa Nostra. Sua decisão de cooperar resultou em informações decisivas que levaram à condenação de inúmeros membros mafiosos. Em seguida, integrou o programa de proteção a testemunhas dos EUA até seu falecimento em 2000.

Salvatore Cacciola (2007-2009)
Salvatore Cacciola, banqueiro ítalo-brasileiro com dupla cidadania, era acusado na Itália por uma série de crimes financeiros, corrupção e associação ao crime organizado. Condenado em 2002 a 17 anos de prisão, ele optou por fugir ao Brasil usando um passaporte falso. A Polícia Federal, em uma operação conjunta com a Interpol, prendeu Cacciola em 2007 na cidade de Itajaí (SC). A partir daquele momento, iniciou-se uma longa batalha judicial, na qual sua defesa alegou questões humanitárias e de dupla nacionalidade para evitar a extradição. No entanto, em 2009, após recurso favorável ao pedido dos italianos, Cacciola foi extraditado, retornando ao país europeu para cumprir a pena imposta, o que demonstra o peso do convênio bilateral mesmo diante de argumentos de cidadania dupla.

Henrique Pizzolato (2013-2018)
O caso de Henrique Pizzolato traz à tona aspectos políticos e jurídicos complexos. Ex-diretor do Banco do Brasil, foi condenado em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 12 anos de prisão pelo escândalo do Mensalão, envolvendo corrupção ativa, lavagem de dinheiro e peculato. Antes de ser preso, fugiu em 2013 com destino à Itália, valendo-se de sua dupla cidadania (brasileira e italiana). Durante cinco anos, manteve-se foragido em território italiano, enquanto seu nome constava nos sistemas de alerta da Interpol. A Justiça italiana demorou a autorizar a extradição, sob o argumento de que Pizzolato poderia ter o direito de pleitear a reavaliação de sua sentença em cortes superiores locais, o que retardou o processo. Somente em 2018, após decisão definitiva do Tribunal de Milão, foi autorizada sua extradição para o Brasil, onde cumpriu pena inicialmente em regime fechado, passando posteriormente ao semiaberto em 2021 e, finalmente, obtendo a liberdade condicional.

Cesare Battisti (2004-2019)
Um dos episódios mais polêmicos de asilo e extradição ocorreu com o ex-militante de extrema-esquerda italiano Cesare Battisti. Acusado de envolvimento em assaltos, sequestros e quatro homicídios na Itália durante a chamada “Década de Chumbo” (anos 1970), Battisti fugiu em 1981 para a França, obtendo inicialmente asilo político. Quando os franceses revogaram seu refúgio, ele se deslocou para o México e, em seguida, para o Brasil, onde chegou em 2004. Em 2009, o então presidente Lula concedeu a Battisti asilo político, alegando perseguição com base ideológica e divergindo fortemente da posição italiana, que o acusava de terrorismo. O Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro determiou, em 2011, que a extradição não seria concedida, já que havia fundamento de dupla avaliação sobre julgamentos no tempo em que os crimes foram cometidos, bem como debate sobre a legalidade ou não de seus julgamentos. Em 2019, no entanto, o governo de Jair Bolsonaro autorizou a extradição de Battisti, que foi preso pela Polícia Federal em fevereiro daquele ano, deportado e transferido diretamente para a Itália, onde cumpriu pena, encerrando um episódio que envolveu disputas de interpretação jurídica, debates de direitos humanos e tensões diplomáticas.

Aspectos jurídicos e políticos do Tratado de 1989
O Acordo de Cooperação Mútua em Matéria Penal entre Brasil e Itália nasceu da necessidade de enfrentar crimes transnacionais, facilitando a troca de informações, cooperação entre polícias e o procedimento de entrega de foragidos. Em sua essência, o tratado estabelece que ambos os países reconhecem a extradição quando as infrações forem puníveis com pena restritiva de liberdade igual ou superior a um ano, fosse qual fosse o território das autoridades requerentes ou requeridas. Entretanto, o documento prevê exceções, como no caso de nacionalidade dupla: o extraditando não pode ser entregue a outro país sem que haja garantias de que seu caso será julgado conforme as leis vigentes à época do crime ou que se preservem direitos fundamentais. Além disso, o tratado exige que a defesa seja ouvida em todos os graus de jurisdição, e que exista reciprocidade no tratamento aos cidadãos de ambas as nações.

A repercussão do caso Carla Zambelli
Na quarta-feira, 4 de junho de 2025, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, decretou a prisão preventiva da deputada federal Carla Zambelli, condenada por invasão do sistema eletrônico do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Imediatamente, surgiu a informação de que Zambelli estaria na Flórida, nos Estados Unidos, com o intuito declarado de tentar evitar a prisão no Brasil. Embora não haja notícia pública de que a Itália tenha sido procurada para conceder asilo ou algum tipo de refúgio, a menção ao precedente de outros réus e condenados que buscaram a Itália para se esquivar da Justiça brasileira reacende debates quanto à aplicação prática do acordo de 1989, mesmo que, em rigor, a condição de Zambelli hoje não coincida com a dupla cidadania, pois não se sabe de um vínculo italiano. No entanto, a menção de episódios passados enseja comparação à forma como Roma e Brasília lidaram com casos semelhantes: avaliam-se garantias processuais, base jurídica dos pedidos e, eventualmente, razões políticas subjacentes.

Limites e desafios das extradições
Ainda que o acordado entre os dois países preveja a entrega de fugitivos, em todos os citados casos existiram nuances que retardaram ou impediram temporariamente a extradição. Temas como a dupla nacionalidade (Pizzolato e Cacciola), reconhecimento de status de perseguido político (Battisti) ou a colaboração com autoridades (no caso de Buscetta) mostraram que além do trâmite burocrático, há variáveis relacionadas à percepção de direitos humanos, estado de necessidade e contexto político interno. No campo jurídico, cabe aos ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou ao STF analisar, em grau de recurso, se a carta rogatória italiana preenche todos os requisitos formais, sem ferir a Constituição brasileira, e se o condenado não seria submetido a pena de morte ou a tortura – hipóteses que vedam extradição conforme a legislação local.

O efeito simbólico e a opinião pública
Para cada figura, houve reação da sociedade e da mídia. No Brasil, a fuga de Pizzolato suscitou críticas ao sistema de controle migratório e questionou a eficácia da vigilância internacional. Já no caso Battisti, discussões ideológicas mobilizaram intelectuais, artistas e políticos, dividindo opiniões entre os que o viam como um ex-militante político perseguido e os que o consideravam um criminoso de guerra. Em contrapartida, a cooperação com a Itália, quando bem-sucedida, gera sentimento de cumprimento do dever de aliança internacional contra o crime organizado e a criminalidade transnacional, reforçando laços diplomáticos e a credibilidade nos mecanismos de extradição.

Conclusão e reflexões
Ao revisitar episódios anteriores, percebe-se que Brasil e Itália, embora signatários de um acordo claro, calibram suas decisões de extradição de acordo com cada caso concreto. Ferramentas jurídicas, como recursos ordinários e extraordinários, análise de garantias constitucionais e acordos bilaterais envolvidos, criam uma teia complexa que atrasa ou, em alguns momentos, impede a entrega imediata do condenado. O caso de Carla Zambelli, ainda em sua fase inicial — com decisão de prisão preventiva e especulações sobre refúgio no exterior —, insere-se nesse histórico de cooperação judicial, mesmo que não haja, por enquanto, movimentação para envolvimento direto de Roma. Resta acompanhar como a defesa atuará e se, eventualmente, surgirá pedido de asilo ou de extradição a partir de território italiano, o que demandaria análise criteriosa à luz dos parâmetros estabelecidos em 1989, além de eventuais decisões políticas que possam influenciar o encaminhamento final.


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